7 de out. de 2010

bailarinas

há bailarinas na caixa de música no relógio da sala em cima do piano. há bailarinas nos meus sonhos de menina. há bailarinas nos palcos reais nas pontas dos pés nas vitrines de cansados néons. há bailarinas enegrecidas de fumaça nas sombras das velas no sopro pálido das lamparinas. o vento forte do tempo devassou a casa soprou cortinas quebrou a caixa de música estraçalhou vitrines. torceu o pé da menina parou o relógio da sala - espatifou a bailarina. não há mais sombras nem fumaça nem choro nem vela. que dirá, lamparinas. ninguém. ninguém se lembra mais que um dia houve aquela bailarina.

ritual

muro cinzento coberto de musgos. dia nublado garoa fria. em bando, pássaros brancos cortam o céu. por sobre o velho muro em fila, formigas negras carregam folhas. lentas, precisas, agourentas. sentinelas do portal talvez. lá dentro, implacável silêncio. a vala preparada à espera. olhos úmidos, abraços, mãos apertadas. velhos amigos que o tempo separou. em frente, em fila seguem as formigas. impossível parar. metáforas da vida talvez. uma a uma, lentamente assistem, sobre o muro frágil ao antigo ritual das despedidas. lá dentro agora soluços, prantos comedidos, preces, indagações, pesares. e o meu amigo dorme indiferente... ao frio, à garoa, aos pássaros negros. ao pranto, às preces e aos abraços. indiferente à dor e à vida - que já foi tão doída. seguem as formigas por sobre o muro. em breve anoitece. amanhã não estaremos mais aqui. por sobre o velho muro - uma a uma seguirão as formigas.

retalhado sentir

torna-se negro o vermelho dourado. envelheço. tentam ainda empoeirados olhos olhar estrelas. pesados - de tristeza e cansaço cedem. o silencio o tempo amargo - tudo - transborda do meu peito aberto e sangra. ah... dor. pesa. retalhado sentir.

3 de out. de 2010

amigo

amigo. abrigo do vento. abrigo do sol. abrigo do tempo. na brisa suave. no vento forte. no furacão. no sol a pino. no sol poente. no tédio do mormaço. na doçura da infância. no sabor de hortelã da juventude. no fel da saudade.

amoras rubras

amoras rubras pendem para o rio. águas vermelhas. os lírios brancos imploram pelas águas. levam perfumes. os pés de paina floresceram de noite. o rio não sabe. e nós crianças, pés pequenos nas águas, que já passaram.

também passaram - nuvens, borboletas. tudo tão breve.

passou o tempo de comer amoras, de colher os lírios. passou o tempo de soprar as painas, caçar borboletas. passou o tempo de olhar as nuvens, de brincar nas águas. passou o tempo. e o rio nem sabe.

brejo das almas

léguas andei em busca de vãs utopias. lutei contra moinhos de vento. dei murros em ponta de faca. tentei reter o último raio de sol do poente e a última gota de água da chuva. guardei vaga-lumes brilhantes em redomas transparentes. mergulhei os girinos do rio em aquários de vidro. enchi potes de água com giz colorido - quis reter suas cores. acreditei que não desbotariam.

desbotam.

as águas. as roupas no varal. as aquarelas. os olhos desbotam e as fotografias. não venci os moinhos de vento. tenho as mãos machucadas das pontas de faca. o sol não me deu o seu último raio. negou-me a chuva sua última gota. vaga-lumes não fizeram brilhar minha lanterna mágica. e os girinos do rio não se tornaram peixes - viraram sapos.

que ainda hoje coaxam no brejo das almas onde mora a saudade.

voraz

voraz. o relógio da sala segue. devorando as horas. selvagem. devorou gerações e segue. devastando o presente. engolindo sonhos. triturando vidas. não perdoa ninguém não poupa nada. sempre no mesmo ritmo. sempre preciso. sempre cruel. sempre frio. sempre.

engoliu a infância. tragou a juventude. corroeu prateleiras. amarelou os livros. desbotou fotografias. estraçalhou vidraças. apodreceu os forros. descascou os muros. lambeu as tintas. mastigou tijolos. vomitou poeira. esvaziou a casa. fechou portas e janelas.

depois passeou sobre a casa vazia. entrou em cada quarto. em cada fresta. devorando baratas e teias de aranha. então, derrubou as paredes. e engoliu tudo. até não restar nada.

por fim, bateu uma hora. é hora de ir embora. devorar outras vidas.

elefantes azuis

o tempo não pára. mesmo. ele não tem mais jeito. desandou a correr ultimamente. desembestou. estouro de boiada. manada - de elefantes azuis.

lava de vulcão - corredeira. maremoto - cachoeira. avalanche - batedeira. desertos.
nós - surfistas sobre ondas instáveis. cabelo parafina. pele dourada sob o sol
que agoniza.

nós - turistas. num safári no Quênia. sobrevoando baixo. sobre a boca vermelha de algum vulcão. escalando Everests. enfrentando Saaras. tempestades de areia - insolação.

ao longe a vida - miragem. oásis - onde?

2 de out. de 2010

Olhos de ir embora

O mundo - eu olho hoje com olhos de meu pai. Contemplativos, resignados, calmos - olhos de ir embora.

Atentos atônitos curiosos - úmidos e claros - cinzentos e embaçados - vermelhos ressecados - quase sempre brilhantes. translúcidos - olhos de ir embora.

Contemplo assim a vida - homens e mulheres. Arvores e pedras. Pássaros e flores. Meninos e cães. Nuvem chuva vento. A terra - com olhos de ir embora.

Fecho meus olhos e sigo vendo como meu pai: o tempo que passou. O tempo que virá. O tempo - com olhos de ir embora.

Penetro num castelo de portas iinfinitas. Abro uma a uma. Já não tenho medo - vejo com os olhos da alma. Eternos - olhos de ir embora.

O templo e as ruínas. Madeira apodrecida. Ferrugem e sucata. Moldura envelhecida. Cabelos brancos - retratos antigos. Objetos no lixo. A roupa velha- a casa vazia. Trapos. Ciscos - nada. Tudo - com olhos de ir embora.

Grãos

Cultivei sonhos no jardim da infância - que floresceram no campus. Deveria tê-los plantado no meu quintal. sonhos são flores frágeis e inconstantes - não resistiram mesmo - à colação de grau.

Plantei sementes de ilusão - colhi sonhos a vida inteira. Por isso hoje tenho as mãos vazias - mas meus canteiros cheios de esperança.

Poeminha

Quando menina fiz um poeminha. Falava de casas com quintal, de um cão, do sol. Depois desenhei com aquarela: uma casa amarela, um cão e o sol.

Passei anos admirando minha pintura e declamando meu poeminha.

Enfim, minha vida se transforma naquilo que sonhei: uma casa amarela, o sol e um cão. Que pena eu ter esquecido de pintar um coração.

Maria

A filha que não tive, se chamaria Maria. Ela teria a pele branca feito a lua e os cabelos cor de terra feito os meus. Seus olhos me olhariam docemente. Maria seria um doce de gente. Mas Maria não se fez. Melhor - assim a imagino sempre. Sempre e outra e outra vez.

Só queria saber

O silêncio das ruas escuras. O cheiro de mofo das antigas paredes. O barulho da chuva nas pedras da rua. A fúria do vento soprando longe as folhas (de antigas árvores de raízes profundas).

A escada verde (mais verde do que as folhas) onde a gente sentava pra ver o sol se pôr - muito além das montanhas cobertas de outros verdes de mato e outras folhas. Fogo no céu - incêndio em nossos olhos.

E eu queria saber pra onde vai a chuva. E eu queria saber pra onde sopra o vento. E eu queria saber porque as folhas secam. E eu queria saber onde é que o sol se esconde. E eu queria saber de onde vem a noite. E eu queria saber - da vida. Só. Que ainda não sei.

Sonâmbula

Onde - as marcas dos que aqui passaram. As sombras nas paredes. O cheiro de hortelã. Dos passos - onde estão as pegadas e a canção entoada, o violão, onde?

Há sons na escuridão — amigos - porque?

Ah... andar assim eu não queria. Viver assim - não. Morrer assim - na noite escura e só. Sonâmbula - quem quer caminhar assim? Eu não. Talvez alguém em mim. Talvez...

Tranquem as portas! Não me deixem sair.

Nem

Fotos antigas sobre a mesa da sala sempre sorrindo - e já não são. Eu - que ainda sou e estou, já não sorrio. Quem sabe - quando eu me for, então sorria, num porta retratos em cima da mesa. Sorriso amarelo - de quem já não é, nem sabe que sorri. Nem sabe. Nem.

Findo dia

Cantigas de roda, águas correntes, perfume de flores do campo. Boca pintada com amoras silvestres, flor no cabelo, pés no chão. Assim foi a vida um dia. E o dia terminou.

Fera

Senti o tempo - lobo cinzento surgindo na colina. Não era noite inda não era dia - antiga hora morta em que os mortos ressurgem. Em sombra - que faz uivar o lobo do tempo.

Casa Caiada

Tijolo de barro cozido. Reboco. Cimento queimado. Forro de madeira. Velhas telhas: a casa. Na janela: flores. No fogão: bule de café. Chá de maçã com canela. No pomar velhas árvores: muitos frutos. Roupas no varal: quintal. No balaio bambu taboa vime: muita fibra. Algodão juta seda - linhas e fios: bordados. Uma roca que não para de fiar. Teares que não cessam de tecer. Urdiduras tramas texturas: tecido. Nesta casa mora o verso. Casa caiada: tecida poesia.

Pássaro e flor

O homem constrói sua casa e passa o resto da vida admirando sua obra. Não é a casa que admira - é sua própria imagem refletida nos vidros das janelas. No espelho d’água dos lagos. No mensageiro do vento nas varandas. João de Barro e Narciso — pássaro e flor. O homem. A casa. O espelho.

À espera do vento

Há uma pipa no meio da rua. Há um menino sentado no chão olhando a pipa. Há um cachorro em cima do muro olhando o menino que olha a pipa no meio da rua. Há na janela alguém que olha o cão no muro olhando o menino que olha a pipa no meio da rua. E todos - à espera do vento que faz voar as pipas.

Não lição

Disseco o poeta e a poesia. Arranco as vísceras das palavras. Debulho letras. Depois as embalsamo, como fiz com o passarinho na aula de ciências, num tempo já distante e depois chorei. Há coisas que definitivamente eu preferia não ter aprendido.

Água na boca

Na minha boca - o gosto do que não vivi: Gosto amaro doce destilado seco fermentado acre sal limão pimenta anis erva mate jasmim camomila hortelã e menta tahine com mel pistache torrado pão com gergelim maçã com canela flores de alecrim café chocolate pastel de belém - que gosto a vida tem?

Dos exílios e das borboletas

Já tive sonhos. Um por um os matei. Exílio - a minha pena. Que pena. À pátria não retornar. Papillon retornou - não retornarei. (Ab)sinto... dentro de mim no entanto, borboletas resistem.

Um sopro

A roupa está puída. Sapatos gastos. Espelhos trincados. Há limo nos muros. Ferrugem nos portões. As portas rangem. O piso lascado. A prata enegrecida. Varais cortados. Goteiras. O vendaval do tempo soprou forte e destelhou a casa.

Brasa Viva

Arde no poeta a chama do querer ser imortal. Porém a brasa viva da palavra inflama e queima a folha branca do papel que em breve será cinza.

Vãos

Caio nos vãos que há em toda parte. Parte de mim quer voar. E o tempo voa. Tempo de frio. Aquece o chá - mel e limão que alenta. A noite densa traz o passado e um pássaro noturno pia. Relógios roem o que restou do dia. E um dia claro que já se foi. Mergulho. No vão nenhum.

A mulher e a serpente

10º - monstro noturno das 7 cabeças – serpente - me persegue. Em arrastados "esses" sibilam as bifurcadas línguas: s s s sedes s s s s s s s solidões s s s s s s s saudades s s s s s s s silêncios s s s s s s s sombras s s s s s s s sensações s s s s s s s segredos s s s s. Presságios – tenho medo. Rezo uma ave-maria. Frio – já não sinto. No abraço da mãe adormeço. E a serpente esmagada sob pés tão pequenos.

Dos sentires do tempo - II

No âmago das dores do homem há sinais do incêndio que consome as horas. As dores são filhas do fogo. O fogo é irmão do instante. No imenso banquete no altar do tempo todos juntos ardem e se devoram.

Dos sentires do tempo - I

O gato assusta o tempo. O tempo assusta o gato. Meus olhos nos olhos do gato. E os olhos do tempo em mim.

O violino

O violino que vive na parede branca da minha sala, ás vezes toca. Pode-se ouvi-lo nas noites quentes, em que a dama da noite rebenta em doçuras e o céu - por ser a lua nova, pipoca em estrelas - muitas. Luzes da ribalta - é sempre a mesma música que toca. Risadas da tia Margarida andando pela casa, sonhando com Carlitos - pode-se ouvir. Violino na mão, ainda flutua nas notas que entoou. A velha tia - amarga no retrato, um dia foi feliz e sorria. Até que um dia o violino emudeceu.

A mãe, a menina, o anjo

A mãe roda a menina e a menina voa. Ela não tem medo de voar. Porque bem sabe ser um anjo quem a sustenta suspensa no ar.

A flor e o (c)asco

Branca e frágil - perfume doce. Uma flor nasceu no pasto. Literalmente desafiou a náusea e o (c)asco. Veio o primeiro cavalo da cidade e a pisou.

Minha vida

Meus sonhos quando morreram. Eu - pensei que morreria. Mas não: - comecei a viver. Vida miúda, pontuada de ausências. Mas minha: minha vida.

Líbero instante

Compreendi finalmente, que de verdade possuímos apenas o momento presente. O passado - já não o tenho. O futuro - não me pertence. As minhas mãos plenas de “agoras” celebram os instantes e os libertam.

Nonna

Fogão de lenha
Tacho de cobre e a “nonna”
... Saudade doce

Pressetimento

No céu monótono dos confins em que me soterrei, um avião corta o silêncio. Posso dormir agora, não estou só. Sobre minha cabeça há vida. No meu quintal um cão quer comida. Julgo, que talvez eu, ainda possa também estar viva.

Do medo, do gato

Oo medo, o medo - o medo fez de mim gato e sapato. Gato escaldado - sapato furado. O medo fez de mim gato assustado. Patas queimadas no zinco quente do telhado. As minhas sete vidas - perdidas na lata enferrujada - do lixo da calçada. Meu olho ímpar - azul ainda cintila. Lambo minhas patas e adormeço.

Ritual

Mais cedo que de costume acordo e entre ciprestes cumpro o ritual da saudade. O pássaro leva nas asas o abraço e a prece.

Dos sentires do tempo - III

Há um tempo na vida em que o melhor lugar é o colo. Depressa vem o tempo da rua. Intenso e breve - ele passa. Chega o tempo da casa. Ninho. Doce que parece ser eterno — não é. Chega enfim (cruel) o tempo em que nada nos comporta. Poesia - único refúgio (meu) neste tempo absurdo sem lugar.

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Pai. o que sentia. Oo percorrer caminhos que hoje são meus. Insondáveis todos os caminhos.

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Perdoa pai. te julguei tão fraco. Hoje carrego meus fracassos tão maiores que os teus.

Nódoa

Árvores do quintal da infância. Revi vi. Sumo nos olhos. Saudade é nódoa que não sai.